ensaio panorâmico
Continente literário
POR FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
FOSSE POSSÍVEL VISLUMBRAR, EM SOBREVOO, O ASPECTO conjunto da plêiade de autores e da diversidade de estilos que, de Geoffrey Chaucer à contemporaneidade, aparecem associados à idéia de uma tradição literária inglesa, o espetáculo que se ofereceria aos olhos do interessado seria agitado como o canal que separa Dover de Calais. Não por simples resistência vaidosa à abstração da unidade. Nem sempre os limites de uma geografia (a ilha úmida, lavada pelas águas frias do Norte, de campos verdejantes e lagos gelados), os contornos de uma língua (o inglês moderno) ou a construção paulatina de uma identidade nacional (altiva, conservadora, mas também rebelde e excêntrica) são apenas camisas-de-força, mitos ou lugares-comuns. Agitação equivale, aqui, a vitalidade variada com ânsia de expansão, ruptura de fronteiras que, ela mesma híbrida, combina a vocação legítima de toda literatura para a universalidade à lógica imperial que dominou a história desse povo de guerreiros e navegadores.
A persistência de temas e formas locais convive nos ingleses com a assimilação de idéias estrangeiras. É certo que não se pode escrever da sensibilidade moderna sem passar pela história da recepção de William Shakespeare (definido, por Harold Bloom, como o inventor do humano), mas tampouco se pode pensar a imaginação romântica de poetas como Wordsworth e Coleridge sem o diálogo próximo com a filosofia alemã e francesa. Se, por um lado, o inglês alçou-se à língua franca no mercado globalizado das letras, acolhendo e batizando, por exemplo, o polonês Józef Korzeniowski, depois Joseph Conrad, alargando sua repercusão em escala mundial, por outro lado, a literatura inglesa apropriou-se da contribuição inestimável do gênio irlandês, que para não falar em Jonathan Swift, Laurence Sterne, George Bernard Shaw ou William Butler Yeats, compôs o essencial de sua linha de frente modernista, os dublinenses James Joyce e Samuel Beckett ombro a ombro com o americano naturalizado T.S. Eliot. Está claro que a visão panorâmica é um terreno movediço e perigoso, lembrando a delicadeza instável das maquetes militares de um personagem de Sterne. Folclórico parente do protagonista de Tristam Shandy, Tio Toby reproduzia, em pequena escala, batalhas cruciais, certo de que só assim poderia conhecê-las de fato. Sabia que cada gesto desastrado ou mal medido acarretaria uma infinidade de baixas e uma representação distorcida, mas o risco se pagava. Só ele nos permite apreender numa linha histórica as tensões que animam e costuram o que, de outra forma, pareceria um amontoado do enciclopédico de nomes mais ou menos célebres: o mundo numa casca de noz, a história numa sucessão de instantâneos.
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