1ª Edição
Agôsto – 1971
Tradução de
João Gaspar Simões
Com licença da Editôra José Aguilar Ltda.
Rio de Janeiro, detentora do “copyright”
Para a língua portuguêsa.© – 1971.
Agradecemos ao Professor Boris Chnaiderman
a assistência, mui gentilmente concedida, para
o aprimoramento ortográfico das obras de
autores russos, publicadas nesta Coleção.
O Editor
Minha é a vingança, e a recompensa.
Deuteronômio, XXVII, 35
a assistência, mui gentilmente concedida, para
o aprimoramento ortográfico das obras de
autores russos, publicadas nesta Coleção.
O Editor
Minha é a vingança, e a recompensa.
Deuteronômio, XXVII, 35
PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO I
CAPÍTULO I
Tôdas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.
Havia grande confusão em casa dos Oblonski. A espôsa acabava de saber das relações do marido com a preceptora francesa, e comunicara-lhe que não podiam continuar a viver juntos. Durava já há três dias a situação, para tormento não só do casal mas também dos demais membros da família, e da criadagem. Todos, na casa, se davam conta de que não havia mais razão alguma para manter aquêle convívio, sentindo que as pessoas que por acaso se encontrassem numa estalagem teriam talvez mais afinidades entre si. Ela, a espôsa, não saía dos seus aposentos; há três dias que o marido não parava em casa; as crianças corriam de um lado para o outro, como que perdidas; a preceptora inglêsa indispusera-se com a governanta e escrevera a uma amiga pedindo que lhe arranjasse outra colocação; na véspera o cozinheiro abandonara a casa à hora do jantar; o cocheiro e a copeira tinham pedido que lhes fizessem as contas.
No terceiro dia após a altercação, o Príncipe Stiepan Arcádievitch Oblonski – Stiva, como lhe chamavam os íntimos – acordou à hora do costume, ou seja, às 8 da manhã, não no quarto conjugal, mas no escritório, deitado no divã de couro. Revolveu o corpo, gordo e bem tratado, sôbre as molas do divã, como que quisesse adormecer de nôvo, e abraçou-se ao travesseiro, apertando-o contra a face. De repente, porém, sentou-se e abriu os olhos.
“Como? Como era?”, pensou, lembrando-se do sonho que tivera. “Como era aquilo? Ah, já sei! Alábin dava um jantar em Darmstadt; não; não era em Darmstadt, era na América. Sim, no sonho Darmstadt ficava na América. Alábin oferecia um jantar servido em mesas de cristal e as mesas cantavam Il Mio Tesoro! Talvez não fôsse Il Mio Tesoro, mas qualquer coisa melhor, e havia umas garrafinhas, que afinal eram mulheres.”
Os olhos de Stiepan Arcádievitch brilharam alegremente, e, sorrindo, ficou-se a cismar. “Sim, era muito bonito, estava muito bem. E havia muito mais coisas magníficas, mas não podia descrevê-las nem por palavras nem em pensamentos, nem mesmo desperto como estava.” Ao perceber um raio de luz que penetrava por um dos lados da cortina, retirou alegremente os pés do divã, procurando com êles, no chão, as chinelas de couro dourado que a mulher lhe oferecera no ano anterior (presente de aniversário) e, costume seu há nove anos, sem se levantar estendeu o braço para o roupão, geralmente dependurado à cabeceira da cama. Então lembrou-se sùbitamente do motivo por que não dormira no quarto conjugal; o sorriso desapareceu-lhe do rosto, e franziu as sobrancelhas.
- Ai, ai, ai! – queixou-se, ao lembrar-se do que sucedera. De novo se lhe representavam na memória todos os pormenores da disputa com a mulher, a posição insolúvel em que se encontrava e as culpas que tinha, e isto era o que mais o atormentava.
“Não! Não me perdoará, não pode perdoar-me. E o pior é que sou o causador de tudo, embora não seja culpado. Essa a tragédia”, pensava.
- Ai, ai, ai! – repetia, desesperado, ao recordar os momentos mais dolorosos da altercação.
O momento mais desagradável fôra aquêle em que, ao regressar do teatro, alegre e satisfeito, com uma bonita pêra para a mulher, não a encontrou no salão nem no escritório, coisa que o surpreendeu, mas no quarto de dormir, na mão o maldito bilhete que tudo lhe revelara.
Dolly, a mulher sempre diligente, cheia de preocupações e tão limitada, segundo pensava Oblonski, sentara-se com o bilhete na mão e olhava-o num misto de cólera, horror e desalento.
– Que é isto? Que é isto? – perguntou-lhe, mostrando o bilhete.
Ao lembrar o ocorrido, o que mais lhe doía, como sempre acontece, não era o fato em si, mas o modo por que respondera à sua mulher.
Naquele momento sucedeu-lhe o que sucede a qualquer pessoa obrigada a confessar algo vergonhoso. Não soube encontrar expressão adequada à situação. Em vez de ofender-se, negar, justificar-se, pedir perdão ou mesmo mostrar indiferença – qualquer coisa teria sido melhor –, apareceu-lhe de súbito, na fisionomia, involuntàriamente (“Reflexos cerebrais”, pensou Stiepan Arcádievitch, que era dado à fisiologia), o sorriso habitual, bondoso e estúpido. Não podia perdoar-se sorriso tão absurdo. Diante dêsse sorriso Dolly estremeceu, como se sentisse uma dor física, e, com o seu arrebatamento peculiar, rompeu numa torrente de palavras duras, acabando por sair, correndo, do quarto em que estava. Desde então não mais quisera ver o marido.
“Aquele estúpido sorriso é que teve a culpa de tudo. Mas que fazer? Que fazer?”, perguntava-se Stiepan Arcádievitch, sem encontrar resposta.
Págs. 13-14
(749 págs.)
Ana Karênina, romance (1875/77) de Leon Tolstói, um clássico sobre adultério feminino, notável sobretudo pelo seu conteúdo psicológico.
Havia grande confusão em casa dos Oblonski. A espôsa acabava de saber das relações do marido com a preceptora francesa, e comunicara-lhe que não podiam continuar a viver juntos. Durava já há três dias a situação, para tormento não só do casal mas também dos demais membros da família, e da criadagem. Todos, na casa, se davam conta de que não havia mais razão alguma para manter aquêle convívio, sentindo que as pessoas que por acaso se encontrassem numa estalagem teriam talvez mais afinidades entre si. Ela, a espôsa, não saía dos seus aposentos; há três dias que o marido não parava em casa; as crianças corriam de um lado para o outro, como que perdidas; a preceptora inglêsa indispusera-se com a governanta e escrevera a uma amiga pedindo que lhe arranjasse outra colocação; na véspera o cozinheiro abandonara a casa à hora do jantar; o cocheiro e a copeira tinham pedido que lhes fizessem as contas.
No terceiro dia após a altercação, o Príncipe Stiepan Arcádievitch Oblonski – Stiva, como lhe chamavam os íntimos – acordou à hora do costume, ou seja, às 8 da manhã, não no quarto conjugal, mas no escritório, deitado no divã de couro. Revolveu o corpo, gordo e bem tratado, sôbre as molas do divã, como que quisesse adormecer de nôvo, e abraçou-se ao travesseiro, apertando-o contra a face. De repente, porém, sentou-se e abriu os olhos.
“Como? Como era?”, pensou, lembrando-se do sonho que tivera. “Como era aquilo? Ah, já sei! Alábin dava um jantar em Darmstadt; não; não era em Darmstadt, era na América. Sim, no sonho Darmstadt ficava na América. Alábin oferecia um jantar servido em mesas de cristal e as mesas cantavam Il Mio Tesoro! Talvez não fôsse Il Mio Tesoro, mas qualquer coisa melhor, e havia umas garrafinhas, que afinal eram mulheres.”
Os olhos de Stiepan Arcádievitch brilharam alegremente, e, sorrindo, ficou-se a cismar. “Sim, era muito bonito, estava muito bem. E havia muito mais coisas magníficas, mas não podia descrevê-las nem por palavras nem em pensamentos, nem mesmo desperto como estava.” Ao perceber um raio de luz que penetrava por um dos lados da cortina, retirou alegremente os pés do divã, procurando com êles, no chão, as chinelas de couro dourado que a mulher lhe oferecera no ano anterior (presente de aniversário) e, costume seu há nove anos, sem se levantar estendeu o braço para o roupão, geralmente dependurado à cabeceira da cama. Então lembrou-se sùbitamente do motivo por que não dormira no quarto conjugal; o sorriso desapareceu-lhe do rosto, e franziu as sobrancelhas.
- Ai, ai, ai! – queixou-se, ao lembrar-se do que sucedera. De novo se lhe representavam na memória todos os pormenores da disputa com a mulher, a posição insolúvel em que se encontrava e as culpas que tinha, e isto era o que mais o atormentava.
“Não! Não me perdoará, não pode perdoar-me. E o pior é que sou o causador de tudo, embora não seja culpado. Essa a tragédia”, pensava.
- Ai, ai, ai! – repetia, desesperado, ao recordar os momentos mais dolorosos da altercação.
O momento mais desagradável fôra aquêle em que, ao regressar do teatro, alegre e satisfeito, com uma bonita pêra para a mulher, não a encontrou no salão nem no escritório, coisa que o surpreendeu, mas no quarto de dormir, na mão o maldito bilhete que tudo lhe revelara.
Dolly, a mulher sempre diligente, cheia de preocupações e tão limitada, segundo pensava Oblonski, sentara-se com o bilhete na mão e olhava-o num misto de cólera, horror e desalento.
– Que é isto? Que é isto? – perguntou-lhe, mostrando o bilhete.
Ao lembrar o ocorrido, o que mais lhe doía, como sempre acontece, não era o fato em si, mas o modo por que respondera à sua mulher.
Naquele momento sucedeu-lhe o que sucede a qualquer pessoa obrigada a confessar algo vergonhoso. Não soube encontrar expressão adequada à situação. Em vez de ofender-se, negar, justificar-se, pedir perdão ou mesmo mostrar indiferença – qualquer coisa teria sido melhor –, apareceu-lhe de súbito, na fisionomia, involuntàriamente (“Reflexos cerebrais”, pensou Stiepan Arcádievitch, que era dado à fisiologia), o sorriso habitual, bondoso e estúpido. Não podia perdoar-se sorriso tão absurdo. Diante dêsse sorriso Dolly estremeceu, como se sentisse uma dor física, e, com o seu arrebatamento peculiar, rompeu numa torrente de palavras duras, acabando por sair, correndo, do quarto em que estava. Desde então não mais quisera ver o marido.
“Aquele estúpido sorriso é que teve a culpa de tudo. Mas que fazer? Que fazer?”, perguntava-se Stiepan Arcádievitch, sem encontrar resposta.
Págs. 13-14
(749 págs.)
Ana Karênina, romance (1875/77) de Leon Tolstói, um clássico sobre adultério feminino, notável sobretudo pelo seu conteúdo psicológico.
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