domingo, 19 de junho de 2011

O FALECIDO MATTIA PASCAL

I

PREMISSA

Uma das poucas coisas, talvez a única que eu soubesse com certeza era esta: que me chamava Mattia Pascal. E me aproveitava disso. Sempre que algum dos meus amigos ou conhecidos demonstrava haver perdido o juízo a ponto de vir me pedir conselhos, eu encolhia os ombros, entrecerrava os olhos e respondia:

- Eu me chamo Mattia Pascal.

- Obrigado, meu caro. Isso já sei.

- E acha pouco?

Para dizer a verdade, eu também não achava muito. Mas naquele tempo eu ignorava o que poderia significar não saber nem ao menos isso, ou seja, não poder mais responder como antes:

- Eu me chamo Mattia Pascal.

Alguém poderá se compadecer (custa tão pouco), imaginando a dor terrível de um infeliz ao qual aconteça descobrir de repente que... sim, não, enfim: nem pai, nem mãe, nem como foi ou deixou de ser; e também poderá se indignar (custa menos ainda) contra a deterioração dos costumes, os vícios e a maldade dos tempos, que podem provocar tanto desgosto a um pobre inocente.

Pois bem, fique à vontade. Mas é meu dever alertá-lo de que não se trata propriamente disso. Certamente, eu poderia mostrar aqui, numa àrvore genealógica, a origem e a descendência da minha família e demonstrar que não apenas conheci meu pai e minha mãe, mas também todos os meus antepassados e suas ações - por um longo decurso de tempo -, nem todas, na verdade, louváveis.

E então?

Pois bem, meu caso é muito mais estranho e peculiar, tão peculiar e estranho que resolvi contá-lo.

Fui, durante dois anos, não sei se mais um caçador de ratos ou um guardador de livros na biblioteca que certo monsenhor Boccamazza, ao morrer em 1803, decidiu deixar para o nosso município. É evidente que este monsenhor devia conhecer pouco o caráter e os hábitos de seus concidadãos; ou talvez cultivasse a esperança de que seu legado pudesse, com o tempo e o conforto que representava, estimular em seus espíritos o amor pelo estudo. Até o momento, e sou testemunha disso, não estimulou: e afirmo isso em louvor dos meus concidadãos. Aliás, o município mostrou-se tão pouco agradecido a Boccamazza que nem ao menos quis erigir-lhe um busto que fosse, e deixou os livros amontoados durante muitos e muitos anos num depósito grande e úmido, de onde os tirou mais tarde - imaginem em que estado - para guardá-los na igrejinha fora da mão de Santa Maria Liberal, que não sei por qual motivo havia sido desconsagrada. Deixou-os sob guarda, sem o menor critério, a título de benefício e recompensa, de algum vadio bem recomendado, que por duas liras ao dia, olhando para eles ou mesmo sem os olhar, aguentava durante algumas horas o cheiro de mofo e coisa velha.


Fonte da imagem: Té la mà Maria - Reus

Fonte: O FALECIDO MATTIA PASCAL
LUIGI PIRANDELLO
1904

Clássicos Abril Coleções
Vol. 17 - 2010
págs. 9 e 10

Tradução Rômulo Antonio Giovelli e Francisco Degani

Notas Francisco Degani

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