quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A estrela do Sul

Pouco depois das três da tarde de um sábado em 17 de março de 1945 nascia, sob o signo de Peixes, uma nova estrela na constelação do Cruzeiro do Sul do país: Elis Regina Carvalho Costa.
O Hospital da Beneficência Portuguesa de Porto Alegre foi o palco de onde Ercy Carvalho Costa, filha de imigrantes portugueses donos de uma mercearia, e Romeu Costa, chefe do almoxarifado da Companhia Sulbrasileira de Vidros, presenciaram a chegada de seu primeiro rebento: uma linda gauchinha que nascera portadora de diplopia, ou visão dupla, um problema que atinge menos de 5% da população infantil pré-escolar. Caracteriza-se por um desvio ocular conhecido popularmente como estrabismo. Os óculos que a pequenina Elis teria de usar a partir dos 4 anos não a impediram, porém, de enxergar o futuro que iria obstinadamente construir.
O nome Elis fora inspirado em xará, amiga de D. Ercy; Regina era imposição dos cartórios, que, na época, não permitiam o registro de nomes aplicáveis a ambos os sexos sem um complemento que evidenciasse o gênero do bebê.
A família Costa residia em uma casa simples do bairro de Navegantes, em Porto Alegre, onde a menina passaria boa parte de sua infância ouvindo a programação musical da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. No domingo, ao meio-dia, havia o programa Quando os Ponteiros se Encontram, do cantor Francisco Alves, o Chico Viola, de quem seu Romeu era fã. A garota também escutava a Rádio Belgrano, de Buenos Aires, em que Carlos Gardel era figurinha fácil na programação portenha, outra preferência do pai. Seu Romeu, por sua vez, justificava a afinidade musical com seus próprios dotes artísticos, que haviam proporcionado a ele na juventude um honroso segundo lugar em um programa de calouros. Esses dotes insurgiram vez por outra na exibição de seu talento de dançarino amador sob a proteção do ambiente doméstico. Pois foi em um almoço de família na casa da avó materna, Ana, como sempre musical, ruidoso e animado, que a mãe de D. Ercy deu a sugestão: ¨por que não levar Elis ao Clube do Guri?". A menina a essa altura já cantava as canções "Adiós" e "Pampa Mia" sem errar a pronúncia, a letra ou a melodia - um prodígio para seus 7 anos de idade.



O Clube do Guri era um programa infantil dominical comandado por Ary Rego na Farroupilha, rádio porto-alegrense. E para lá foi D. Ercy com a menina a tiracolo, dois domingos seguidos, até conseguir a suada apresentação da filha. Mas o primeiro contato com a mídia foi traumático para a tímida Elis, acostumada a exibir seu talento apenas no aconchego familiar. Intimidada pela plateia e assustada com o ambiente estranho, não conseguiu articular sequer um vocábulo, que dirá cantar. Então lá se foi D. Ercy, levando de volta para casa, além da filha, uma grande frustação.
Elis era uma aluna excelente desde os primeiros anos de escola, em uma combinação de boas notas e dotes artísticos dificilmente vista na história dos grandes gênios da música brasileira. Foi nessa época, em 1952, que se mudou com a família - aumentada com a chegada do irmão Rogério, cinco anos mais novo - para um conjunto residencial de funcionários da indústria no norte da cidade. Era um apartamento térreo que tinha um espaçoso quintal, localizado em uma vizinhança verde, com direito a figueira e campo de futebol bem em frente.
Nessa época a empresa em que seu Romeu trabalhava repentinamente faliu, e o patriarca passou a peregrinar pelas atividades de representante comercial, dono de açougue, dono de açougue e feirante, todas sem sucesso, o que o fez mergulhar numa instrospecção e um pessimismo que o afastariam dos filhos.
Enquanto isso, aos 9 anos, Elis aprofundava seu mergulho musical nas lições de piano com uma vizinha do conjunto residencial chamada Waleska. Sentindo-se mais segura, pediu à mãe uma nova chance no Clube do Guri. Dessa vez não teve erro, a menina arrebentou. Dos 11 aos quase 14 anos, seria presença dominical do dial farroupilha. Já nessa época, um precoce perfeccionismo aumentava a insegurança de entrar em cena, mas, uma vez ali, tirava os óculos, fechava os olhos, sorria e se entregava à música praticamente em transe.
Em 1959, quando João Gilberto já era febre nacional entre os sofisticados jovens cariocas e paulistanos, o Clube do Guri tornara-se pequeno para o crescimento artístico da cantora, e ela, ainda na provinciana Porto Alegre, assinava com o Programa Maurício Sobrinho, na Rádio Gaúcha, por 50 cruzeiros por mês. Antes, portanto, de 1968 inverter os polos da moral e dos bons costumes mundiais, configurava-se o constrangimento: uma menina de 14 anos sustentar a casa, ganhando com a vida "marginal" de artista mais que o próprio pai.


Talvez por isso, cursando o ginásio no tradicional instituto de Educação Flores Cunha, a professora de francês a tenha chamado "mau elemento", fazendo com que D. Ercy subisse nas tamancas para forçar a transferência da professora. Assim Elis terminaria em paz o ginasial. De uma condição, porém, a família não abria mão: se quisesse continuar cantando, suas notas deveriam permanecer altas. O futuro profissional de Elis, que todos esperavam - incluindo ela própria -, seria o magistério, e não o palco, algo visto apenas como hobby. No meio do curso clássico, porém, um esgotamento nervoso surgiu e a adolescente entrou em colapso. Os deuses da música forçavam passagem.
Aos 15 anos, em 1961, a debutante na vida e na carreira fonográfica ia ao Rio de Janeiro pela primeira vez, já com a devida autorização materna, para, de salto alto e unhas pintadas, gravar seu primeiro disco. Era um compacto com as faixas "Dá Sorte" e "Sonhando", antecipando parte do LP Viva a Brotolândia, pela Continental, produzido por Nazareno de Brito. Uma das canções tinha a assinatura do compositor e agitador cultural Carlos Imperial, que se frustaria ao tentar criar, a partir da cantorinha gaúcha, uma nova Celly Campello. Ainda assim Elis seria coroada Rainha do Disco Clube.
Já de volta à capital gaúcha, Elis lançaria, em 1962, seu segundo LP pela Continental, Poema. Aos 17 anos, amadurecia como crooner do conjunto local Flamboyant. No ano seguinte, iria para a gravadora CBS registrar dois LPs: Ellis Regina (isso mesmo, com dois "Ls") e O Bem do Amor, ambos sem projeção nacional e ainda radicalmente opostos ao repertório que a transformaria em uma das maiores porta-vozes da MPB.

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